Ainda em cartaz, "Estamira": A Psicanálise nas telas do Cinema Ainda em cartaz, "Estamira": A Psicanálise nas telas do Cinema Still in theaters, "Estamira": Psychoanalysis in Cinema screensThiago Robles Juhas Niraldo de Oliveira Santos Resumo O presente trabalho tem como objetivo discutir e articular as relações entre o cinema e a Psica- nálise. Para isto, utilizou-se do documentário Estamira, de Marcos Prado, 2006. O fi lme retrata a história de uma mulher que sofre de transtornos mentais e trabalha, há anos, no hoje extinto aterro sanitário na cidade do Rio de Janeiro. O Cinema, como expressão de arte, se relaciona com a Psicanálise de diversas formas, pois também trata da subjetividade dos participantes na produção cinematográfi ca. O diretor, sem ter a intenção de qualquer expressão psicanalí- tica, assume um lugar de objeto que escuta e deseja desvendar o saber da personagem, o que se assemelha à função de um analista. Estamira transmite aos telespectadores sua narrativa da verdade, seu discurso contundente que, na mesma enunciação impacta, confunde e toca. Na psicose, como é caso de Estamira, os delírios da personagem tentam responder a eventos traumáticos inassimiláveis, são respostas a circunstâncias compostas de grande sofrimento; a personagem elucida o mecanismo de produção delirante ao mostrar, em sua história de vida, que a única resposta possível encontrada às violências que vivenciou, foi o delírio. Palavras-chave: Psicanálise, Cinema, Psicose, Delírio. Apresentações "A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem,
O que pensar destas palavras que, ao mes-
cerca de seis anos no aterro sanitário de Jar-
mo tempo, dizem algo que não tem sentido,
dim Gramacho, no Rio de Janeiro. Em meio
mas aparentam ter algum tipo de signifi ca-
ao ambiente fétido e imundo que o rodeava,
do? Quem tem ouvidos, que ouça! No ano de
2000, Marcos Prado, diretor e fotógrafo, rea-
postura peculiares, contemplando a paisa-
lizava um trabalho fotográfi co que já durava
gem do lixão. Pede a ela autorização para
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fotografá-la. Esta consente, com a condição
tos e as mudanças do discurso da persona-
de que, depois, ele sentasse para conversar.
Na prosa com Marcos, a excêntrica senho-
efeitos (colaterais) dos medicamentos, que
ra conta que mora em um castelo, enfeitado
toma diariamente. Os fi lhos de Estamira
com lixo e fala sobre o mundo, as pessoas, e
também participam do fi lme, contam sobre
coisas que, às vezes, parecem não fazer muito
seu passado trágico e mostram como é vi-
ver ao lado de alguém com esquizofrenia. Já
a personagem conta pouco de sua história e
la senhora, discurso bem diferente e, por ve-
fala mais de sua "verdade" e de sua "missão".
zes, confuso. Eles se tornam amigos e, certo
O fi lme sensibiliza quem o assiste, pois
dia, ela lhe pergunta qual seria sua missão.
as falas e os signifi cantes contundentes dos
Antes que ele pudesse responder, ela diz que
personagens chocam, sua narrativa parece
a missão dele era a de revelar a verdade dela.
possuir diversos signifi cados que, às vezes,
Desta forma, Marcos Prado decide fazer um
escapam do espectador. É preciso assisti-lo e
fi lme sobre sua vida e nomeia a produção
ouvi-lo, mais de uma vez, porque, só assim,
com o nome da senhora: Estamira. O presen-
é possível supor uma compreensão acerca da
te trabalho tem como objetivo tecer algumas
seqüência discursiva da personagem quando
considerações sobre Estamira, o cinema e a
esta fala de coisas reais, concretas, sofridas,
de traumas que podem ser de difícil com-preensão para quem nunca vivenciou tais
A personagem e a sua história
sensações em sua vida. O diretor apresenta,
Estamira, fi lme de Marcos Prado (2006), con-
através do gênero documentário, o mundo
ta a história de Estamira, uma mulher que
da personagem como ele realmente é. Há
sofre de transtornos mentais, vive e trabalha,
há mais de 20 anos, em um aterro sanitário.
lixo, podridão, miséria, coisas concretas, que
Uma pessoa de olhar e expressão de quem já
rodeiam o mundo de Estamira: tentativas de
sofreu muito ao longo da vida, uma mulher
de vida árdua, que fala sozinha, ouve vozes e, quando se refere a Deus, o faz com catarse,
Aproximações possíveis
proferindo inúmeros palavrões. Trata-se de
entre cinema e psicanálise
uma fi gura muito carismática e respeitada no
extinto lixão da capital carioca. Sua história
é marcada por violência e rupturas, dentre
na (a partir da visão do diretor), que conta
elas: os estupros, a prostituição, as traições
com a subjetividade de quem o produz com
vivenciadas em seus dois casamentos, o dis-
um objetivo e transmissão de valores. É arte
tanciamento de sua fi lha mais nova, a depen-
como expressão da verdade; a vida como ela
dência alcoólica e o fato de ter sido moradora
é, sendo que, por vezes, há intenções políti-
de rua. Ao assistir o documentário, pode-se
co-partidárias - o desejo do diretor? De cer-
acompanhar o seu tratamento psiquiátrico
ta forma, o cinema, como fi cção ou irreal,
na rede pública: os médicos a diagnosticam
representa a realidade transformada em arte,
como portadora de quadro psicótico de evo-
que trabalha, quase sempre, retratando as
lução crônica, alucinações auditivas, idéias
produções humanas, fato este que chama a
de infl uência e discurso mítico. As fi lmagens
atenção de quem estuda e se utiliza da psi-
duraram quatro anos, sendo que o início da
canálise. Segundo Penafria (1999, p.17) "um
produção coincide com o começo do trata-
documentário pauta-se por uma estrutura
mento psiquiátrico; assim, o fi lme retrata e
dramática e narrativa, que caracteriza o cine-
ma narrativo. A estrutura dramática é cons-
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tituída por personagens, espaço da acção,
problematizam a realidade. As produções
cinematográfi cas sempre comunicam algo,
nascimento em épocas semelhantes, no fi -
clara, muito ou pouco política e que pos-
nal do século XIX, quando o conhecimento
sui diferentes gêneros, como por exemplo,
científi co e as novas formas de tecnologia
a comédia, o drama, o terror, o suspense
e o romântico. A prática e costume de ir
nálise vê e observa um mundo de represen-
tação e memória, toma o homem para além
tra pessoa, já está incorporada em muitas
do corpo e, sem excluí-lo, procura desven-
culturas como meio de se fazer laço social,
dar os anseios e vicissitude da alma huma-
na. Se a psicanálise como ciência e técnica
pais separados que levam seus fi lhos ou ca-
se aprimorava, o cinema cada ano se utiliza
sais que se enamoram nas salas de cinema.
de novas tecnologias ópticas para ampliar o
olhar, para operar no universo do fantásti-
funções distintas: a comédia para quando se
co e construir expressões de realidades de
está triste ou para desfrutar o momento com
amigos; o drama e o suspense para fazer re-
fl etir e questionar-se; o romance para cativar
fragmenta o racional e a fantasia e, de ma-
um outro de quem se quer aproximar ou, até
neira similar à psicanálise, investiga, cons-
mesmo para, sozinho, elaborar os desenla-
trói e desconstrói a racionalidade, aprende
ces das relações. Existem, também, os gêne-
e formaliza um olhar científi co ao que não
ros mais explícitos como é o caso dos fi lmes
opera logicamente. Ambos, os fi lmes e a te-
adultos que tem muitos desdobramentos psí-
oria psicanalítica acerca da construção da
quicos como o fetiche e a compulsão sexual.
realidade, são frutos da união da ciência,
razão e irracionalidade, e sem dúvida, po-
homem o que nele há de mais importante e
de-se afi rmar que o cinema e a psicanálise
problemático: traz à tona seu particular, seu
contribuíram para a construção da subjeti-
"buraco", aquilo que o faz sujeito. A psicaná-
vidade e seu acesso a ela, ao longo de todo o
lise tem sua matriz implicada com a arte, na
tragédia de Édipo, na dúvida de "ser ou não
ser" de Hamlet. Mesmo que Freud não tenha
escrito nada sobre o cinema, a arte foi tra-
sam, por meio de imagens e sons variados,
balhada e teve importância ao longo de sua
as emoções humanas, "O homem busca no
obra. Artistas como Leonardo e Michelange-
lo contribuíram com a obra psicanalítica. As-
para viver uma experiência imaginária com
sim como a análise dos textos de Schereber, o
todas as emoções proibidas e perigosas; sai
legado de Freud sobre a psicose e a obra Gra-
delas como se despertasse de um sonho"
diva de Jansen são contribuições literárias e
Os fi lmes podem ser a expressão de uma
artísticas que formalizam a psicanálise como
dimensão onde não há falhas, tudo pode ser
ciência humana. Segundo Ide (2008), as ima-
gens em movimento, os sons, as impressões
de temas complexos e problemáticos, onde
obtidas a partir da experiência de assistir um
sempre é possível um "então viveram feli-
fi lme, todos estes elementos absorvidos pelo
aparelho psíquico, são, sempre, recobertos
são do ideal e fantástico, do integrado e
por sentimentos e afetos que, às vezes, são
alienante, há, também no cinema, imagens
recalcados, simbolizados, sublimados ou so-
que propõem questões aos espectadores e
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 36 | p. 157-164 | Dezembro/2011 Ainda em cartaz, "Estamira": A Psicanálise nas telas do Cinema O que é tão estranho em Estamira?
da negação, o conceito de estranho em Freud
Estamira é um documentário didático ao
indica o recalque, demonstra situações em
mostrar os alcances da relação entre cinema
que o que deveria permanecer obscuro é tra-
e psicanálise. Talvez um dos aspectos mais
zido à luz, irrompe na consciência, ou seja, o
importantes do fi lme seja demonstrar a fun-
que se apresenta como estranho está vincula-
ção e a importância da escuta, pois ouvir o
do, de alguma forma, com o que é familiar. O
outro nem sempre é fácil; escutar do outro
estranho provem de que algo recalcado pode
sobre o que nos é diferente ou muito seme-
retornar, não importando se o elemento em
lhante, escutar sobre a dor ou morte é, mui-
questão já era originalmente assustador ou
tas vezes, insuportável. Entretanto, não é isso
pertencente a qualquer outro tipo de afeto,
mesmo que faz a psicanálise? Escutar o sujei-
to? Até que ponto se escuta os outros fora de
O fi lme, desde o seu início, causa estra-
um dispositivo analítico, suas fantasias, seus
nhamento e, quem assiste se pergunta: que
delírios ou pergunta-se: o que se escuta de
realidade é essa? As imagens aparecem como
do fora da realidade. As primeiras impressões
pode discordar do que a protagonista fala;
são de um lugar sem forma, sem matéria,
em outros, há um estranhamento profundo,
que tem um aspecto sombrio. Os primeiros
mas, estranho mesmo, é que o conteúdo de
minutos de fi lme são formados por palavras
sua narrativa, em alguns momentos, também
que, parecem não ter sentido, paisagens sem
nos é familiar. O telespectador reconhece,
tomado de angústia, o abandono da perso-
séria. O retorno do recalcado dos telespecta-
nagem por parte dos pais, dos cônjuges, da
dores se atualiza nas cenas do lixo, do dejeto,
sociedade e de deus. Quem assiste Estamira,
do que pode ser descartado, na solidão, na
certamente, se recorda de que existem pes-
fome, atributos que retornam á consciência,
soas que vivem no lixo, no refugo, que são
mas, melhor seria se de lá não tivessem saído.
tratados como abutres, que vivem à borda,
O que fi ca sob recalque, primordialmente, é
sujeitos com famílias sustentadas pelo que se
o fato de que todo o lixo mostrado é familiar.
obtêm do lixo. Como não estranhar tal situ-
É conhecido dos telespectadores e de todos
ação. Como não se incomodar com as narra-
os homens, de maneira geral, pois todos são
produtores de lixões. Os restos amontoados
Em seu artigo "O Estranho", Freud (1919)
mostrados por Marcos Prado, que estão em
estado de putrefação, já estiveram em nossas
aquilo que, um dia, já foi familiar, ou seja, ao
mãos. Assim vemos os dejetos por nós pro-
se deparar com alguma imagem ou sensação
duzidos e descartados, queremos esquecê-
qualquer, ocorre o retorno de uma percep-
los, negamos sermos responsáveis pela for-
ção que, em um algum momento anterior,
mação de montanhas de lixo, que, inclusive,
era conhecida, e, no estado atual, é percebida
destroem o meio ambiente. Segundo Rinaldi
como estranha. Através da sobreposição do
(2008, p.63) "é o resto que retorna e que in-
percebido da realidade externa e do vivido
no mundo interno o elemento chave da situ-ação de estranheza, foi, outrora, esquecido ou
Esta que "mira" o social
reprimido. O conceito freudiano diz respeito
O discurso de Estamira problematiza o lixo
à ideias que se associam ao retorno de uma
como uma representação da própria condi-
cena que foi reprimida, fato que provoca, in-
ção do homem, do quanto o homem se ape-
dubitavelmente, uma sensação de desamparo
ga ao desnecessário, e como a sensação de
e angústia. Acompanhando a mesma lógica
prazer trazida por este nos torna escravos do
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imediato, da máxima, "usou jogou fora". O
ouve. A personagem se utiliza da imaginação
e busca a sua verdade. Ela se impõe com uma
paro humano; não só o biológico ou familiar,
força narrativa que traduz suas experiências
mas, também, o social, o econômico e o po-
lítico. Estamira, essa que olha, é uma idéia,
criança, traída pelo marido na fase adulta e
um estado de espírito no qual o ser huma-
no pode ser mais autêntico. É uma resposta
à negligência social. Sabe-se dessa realidade,
pois ela é vista todos os dias, mas é esqueci-
contidos em frases com palavras conhecidas
da, é recalcada. Mas, no entanto, ela retorna.
se misturando com neologismos. A narrativa
se une com uma trilha sonora angustiante e
série de elementos politicamente corretos,
as imagens de um lixão: tudo impacta, tudo
demonstra códigos sociais estabelecidos, de-
é tão real. Estamira tem "verdades" a serem
fl agra e denuncia alguns comportamentos
reveladas ao mundo. A verdade por ela rela-
tada, como afi rma uma de suas fi lhas, são pa-
A denúncia alcança muitos níveis, tais
lavras que abalam profundamente, mas, logo
em seguida, se perdem quase por completo.
perdício, o questionamento da educação do
Sabe-se que a oferta cria a demanda: Esta-
país conceituando os homens da atualidade
mira demanda aos seus telespectadores sua
como indivíduos assujeitados, uma vez que,
narrativa da verdade, seu discurso poético e
só reproduzem e não possuem autonomia.
delirante, que na mesma enunciação ensina
Da mesma forma, critica o tratamento psi-
e confunde, e, como bem disse sua fi lha, 'ba-
quiátrico sem o cuidado de particularizar os
lança', faz com que pesemos nossas certezas e
sujeitos, generalizando e homogeneizando
nossas 'verdades ao contrário', como ela diz.
o que deveria ser o mais particular, o sofri-
De certo modo, a personagem se assemelha a
todos nós, uma vez que, de acordo com Ven-tura (2008, p.144) "muitas vezes buscamos a
O desamparo e a denuncia da "verdade"
nossa própria verdade e porque não dizer a
O olhar de Estamira assusta. É possível ver
em seus olhos que experimentou muito sofri-mento ao longo de sua vida. O documentário
Delírio, a borda do real
revela sua história, que vai sendo desvenda-
O diretor oferta a escuta, assume a missão
da aos poucos. Demonstra seu cotidiano, a
que lhe foi dada por Estamira. Por mais arro-
subjetividade, o modo de estar no mundo da
gante, verbalmente agressiva e desagradável
personagem e os seus delírios. Seu discurso
que a personagem possa se mostrar, Marcos
é, muitas vezes, um trocadilho, um equívoco,
Prado dá voz a seus delírios, sustenta uma
bem como se utiliza de uma entidade, por ela
ética de caráter psicanalítico, a ética da es-
criada, o "trocadilo", esta criação mítica, se-
cuta. O fi lme aborda a psicose e a escuta do
gundo Estamira, é responsável pelos equívo-
seu dizer. O delírio é um dos pontos princi-
cos que viveu e os mal-entendidos que exis-
pais tratados no fi lme, a personagem elucida
o conceito ao mostrar em sua história que a
Às vezes, é difícil compreender a sonori-
resposta encontrada para os abusos e as vio-
dade das palavras da personagem; é curiosa a
lências a que foi e é submetida, foi uma res-
diferença que há entre assistir o fi lme com ou
posta delirante, pois Estamira é convocada a
sem legenda, pois sem esta, a compreensão
responder onde não pode, e assim responde
do que diz Estamira conta muito mais com
com o delírio. Os delírios são respostas a cir-
a interpretação e a subjetividade de quem
cunstâncias de sua vida composta de grande
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sofrimento e encontros com 'tudo que é tão
que também vivem na borda de um país e
de um mundo que não quer saber, e prefere
continuar vivendo adormecido em relação a
real falta do objeto, ou seja, qualquer evento
situação da exclusão dos portadores de trans-
que apresente status traumático, faz com que
tornos mentais. A partir do "Caso Estamira"
algo se estruture no psiquismo. Na neurose
torna-se possível, ainda, notar o estigma e o
há o recalque e uma resposta ao trauma com
preconceito que as pessoas acometidas por
uma fantasia e com o simbólico. Na psicose,
transtornos mentais, inclusive os transtor-
como é o caso de Estamira, é o delírio que
nos psicóticos, ainda sofrem da sociedade.
tenta responder ao traumático inassimilável.
Inclusive com os próprios fi lhos, que, por ve-
zes, falam das difi culdades de se ter uma mãe
monstra que ela foi uma mulher saudável
até o período da vida em que os sucessivos encontros com a violência e as situações que
A escuta e a transmissão:
não podiam ser elaboradas de forma neuró-
tarefas distintas
tica, a levaram a não mais acreditar e sentir,
como ela fazia até então. Anteriormente, Es-
missão de conceitos psicanalíticos, é possível
tamira era uma pessoa com valores religiosos
analisar o tratamento da psicose que ele ope-
que acreditava em um deus, protetor e bon-
doso. Era, também, uma boa mãe, contida e
Prado permite que fale e a deixa delirar, de
modo a não barrar ou impor testes de rea-
É importante ressaltar que o delírio não é
lidade. Marcos Prado, sem ter a intenção de
a psicose propriamente dita, e, sim, uma ten-
qualquer expressão psicanalítica, assume um
tativa de tratamento desta. É o restabeleci-
lugar de objeto que escuta e deseja saber do
mento das relações libidinais com os objetos
saber da personagem, o que caracteriza de
anteriormente abandonados (Leite, 2006).
forma bem consistente a função de um ana-
Trata-se de uma tentativa de recobrir um
lista, que, tal como o fotógrafo, constrói um
buraco e da falta de operações simbólicas: o
fenômeno oferece contorno ao que não pode
A escolha do diretor sobre o que foi mos-
ser simbolizado. A esquizofrenia constitui
trado no documentário considera importan-
casos em que é difícil compreender a pessoa
tes elementos da subjetividade de Estamira;
analiticamente, pois há um total retraimento
o diretor oferece a sua escuta à personagem
da libido, o que difi culta o estabelecimento da
que sofre e necessita dar voz ao seu mundo
transferência; contudo, o possível tratamen-
mental. A construção de Marcos Prado par-
to da esquizofrenia também se dá na escuta
tilha elementos em um trabalho conjunto:
analítica em que o objetivo é da reconstrução
É importante diferenciar que construção
Segundo Sousa (2007), os delírios da per-
não é o mesmo que interpretação. A cons-
sonagem de Marcos Prado, se não conside-
trução do documentário é direcionada para
rados como uma história individual e parti-
o arranjo dos elementos do discurso de Esta-
cular, são entendidos apenas como loucura.
mira, visando demonstrar a história e as con-
Aos olhos dos outros, é reconhecida como
dutas da personagem. Já a interpretação visa
louca, não tem crédito, não se pode compre-
um sentido - não há no fi lme uma interpre-
ender, não consegue compartilhar opiniões
tação direta -, mas fi ca a cargo de quem as-
e crenças. Contudo, o diretor permitiu a fala
siste interpretar Estamira: ela é louca, é sabia,
de uma realidade facilmente encontrada por
é doente, é lúcida, é somente uma vítima? O
muitos, inclusive moradores de rua e pessoas
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posição ativa do diretor, uma vez que ele sai
gumas cenas com cores vivas e iluminação ao
de uma posição exclusiva de escuta, para a de
natural; em outras, aplicou o efeito de preto-
amigo, companheiro e provedor econômico
e-branco quase chegando à desintegração da
de Estamira, papéis que não cabem a um
imagem, formas cinematográfi cas que dão
analista. Pensado como um "caso clínico" o
maior destaque ao lixo e a miséria. Durante
fi lme é didático, mostrando de forma ímpar
anos seguidos visitou Estamira e seus fi lhos,
o que é a psicose - já que nesta o inconscien-
seus companheiros os catadores de lixo que,
te está a céu aberto. O diretor, na montagem
fi nal, encontrou elementos do discurso da
lubre depósito de lixo da cidade do Rio de
personagem ao pé da letra, incluiu as ações,
demonstrando que estas são norteadas por
Marcos permite que ela se faça ouvir e re-
uma posição no discurso determinada por
gistra sua revolta contra um deus estuprador
Estamira. O relato se apresenta rico em de-
e médicos copiadores de receitas. O diretor,
talhes, cenas e conteúdos. O diretor jamais
como o analista, busca o singular de quem
deve ter imaginado que receberia uma mis-
fi lma/ouve, por meio do caminho que o su-
são, esta muito similar a dos analistas.
jeito percorre: não atrapalha a caminhada, segue a direção - no caso do fi lme - que Es-
Considerações fi nais
tamira lhe aponta e transmite o caminho so-
Estamira e o documentário convocam o ex-
litário que ela percorreu em sua vida.
pectador a se deparar com seus próprios de-
A partir da psicanálise, o analista propõe
jetos. Miller (2010, p.1) discorre que os deje-
ao paciente que não deixe nada de lado em
tos são os elementos rejeitados, "o que cai, é
sua fala. O paciente é levado a falar sobre to-
o que tomba quando por outro lado algo se
dos os assuntos possíveis, mesmo detalhes
eleva". O fi lme nos convoca a olharmos que
que parecem desprezíveis: a regra fundamen-
o resto, o que se joga fora, retorna. O fato é
tal é a associação livre. Em contrapartida, no
que, para a psicanálise, os dejetos do mental
cinema há uma seletividade na inclusão de
são as formações do inconsciente, matéria-
cenas que se impõe desde o princípio; nem
toda imagem é importante para o diretor e
para a composição do fi lme. O cinema que-
anos para preparar o documentário, soube
bra a regra fundamental da psicanálise, pois
respeitar o tempo e as limitações de Estami-
toma algumas cenas como irrelevantes, sem
ra. Segundo ele, de fato, recebeu uma missão,
importância, ou absurdas. Tanto no processo
a de revelar a sua história e realidade (sua vi-
de análise, quanto no cinema, quando se in-
são de mundo). A Estamira resta delirar, fa-
terrompe uma sessão ou se sai da sala após o
lar de sua missão e, assim, tentar imprimir
término de um fi lme, os efeitos continuam a
repercutir para alguns sujeitos e, por vezes,
nós, resta-nos lidar com todo esse resto, que,
levam dias para passar. Tal é o caso da angús-
por mais esquecido e descartado, volta a nos
tia ou do "estranho" que são despertados em
questionar cotidianamente - na vida, na clí-
Os elementos utilizados por Marcos Prato
são similares à construção de um caso clí-nico em psicanálise. Não é igual a um caso clínico, pois, segundo Figueiredo (2004), diferente dos casos "psicanalíticos" que têm como objetivo transmissão e construção da psicanálise, o documentário conta com uma
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 36 | p. 157-164 | Dezembro/2011 Ainda em cartaz, "Estamira": A Psicanálise nas telas do Cinema Abstract
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Psicólogo Clínico e Psicanalista em Formação. Espe-cialista em Psicologia Hospitalar, Curso Avançado de
Keywords: Psychoanalysis, Cinema, Psycho-
Formação continuada em Psicologia Hospitalar: Saú-
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Psicanalista. Membro da Comissão de Ensino da Clí-
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nica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psica-nálise (CLIPP/SP). Doutorando em Ciências pelo De-
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partamento de Neurologia da Faculdade de Medicina
uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à
da USP. Diretor Técnico de Saúde do IC/HCFMUSP
saúde mental. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. São Paulo, n.7, p.175-186, mar./2004. Endereço para correspondência: Rua Artur Pinto da Rocha, 53 - Jaguaré
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Finally -- FDA Admits That ALL Anti- Inflammatories May Kill You Posted by January 05 2005 | 9,360 views It has been discovered that nonsteroidal anti-inflammatory drugs, or NSAIDS, such as Cox-2 inhibitors Vioxx, Bextra and Celebrex, lead to an increased risk of cardiovascular problems. However, it turns out that these prescription drugs are not the only painkillers that should be av
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